Sunday, August 20, 2006

Navalha Cega

Quase
Nos próximos instantes, farei circular pela mesa uma pilha de recortes de revistas com vultos feminis. Ou antes, resquícios do que já foi uma mulher ou do que será uma, dependendo da resposta do meu leitor à pergunta “o senhor se considera uma pessoa feliz?”. De qualquer forma, recortes de recortes. Temos lascas de sorrisos estragados, buços insuspeitos e olhos que pululam com os feixes da lâmpada de estudo. São formas inúteis, mas essas arbitrariedades de poder descontextualizar pernas, orelhas e omoplatas me proporcionam a mesma diversão que goza a criança brincando de esquartejador com um Mr. Potatohead. Evado-me desta palavra – esquartejador - para evitar associações decisivas na mente do pervertido precipitado (pois não há nada pior e mais depravado do que um pervertido que reconhece outro); quero poder ir até o fim sem que cravem o indicador emporcalhado na minha boca. Além do mais, o esquartejador vai procurar sua matéria prima na carne bruta ainda viva, enquanto busco a minha nos restos perdidos dos sonhos do próprio esquartejador. Vejam bem, tudo é puramente quimérico; doutores, os ângulos das minhas fantasias se encontram em alinho angelical comovedor. Toda essa concretização em forma de fotos é apenas uma representação inocente. Nunca degluti papel.



Esta é Janaína. Armei as pernas de uma modelo espanhola no tronco de uma atriz húngara de teatro, dei o rosto desolador de uma menina bósnia que encontrei na seção de obituários num jornal e arrochei à imagem os belos olhos verdes e miúdos de minha irmã. O riso vem da França, de alguma reportagem faits divers, creio. Aqui jazem todos os limites e sombras possíveis de Janaína, sendo inútil encontrar maiores ambigüidades além daquelas que mão a trêmula, desfiando seus contornos com uma tesoura, escancara.

Janaína gosta de teatro, Janaína gosta do zepelim enorme cujo retorno filmes fantasiosos pressagiam, Janaína gosta de carnaval. Todos, menos Janaína, gostam de Janaína inteiramente nua. Por alto, Janaína é um arroubo de lubricidade quando o pano cai. No papel, Janaína é celulose.

Encontro, por acaso, Janaína na minha cama. Não sei o que faz, mas farfalha qual serrote de fio embotado -- uma velha alucinada brigando com algo que não está lá. Janaína é mínima. Enquanto todo mundo que quer Janaína deflorável se ocupa em despi-la em um grande mosaico de igreja, Janaína ronca num sono profundo, fazendo uma única tira modesta e solitária de papel colorido bruxulear.

Thursday, August 03, 2006

Room with a View

A senhora tem a minha atenção, agora se cale. Mais aprazível ainda seria se esses seus pêlos brancos e nasais se quedassem imóveis. E esses fiapos de cabelos que escapam do chapéu e que o vento leva. Atravancam. Se é por isso, que se mate, mumifique-se, mas não tire esses seus olhos de cima de mim. Não, você se engana, não tenho a menor intenção de ser afável; os óculos escuros, barba e rugas eu conservo comigo durante todo o processo, não tiro por toda simpatia do mundo. De resto, não lhe devo satisfações e afirmo, por nós dois, não haver titubeios quanto à constatação de a senhora ser perfeitamente ridícula (aos sessenta e tantos anos isso deve lhe ocorrer pelo menos três vezes ao dia, quando se pilha de soslaio - o espelho atrás servindo de filmadora - a pegar uma bolsa, na ponta dos pés, no topo da estante). É ridícula até mesmo do outro lado da calçada, entre palhaços de rua e cachorrinhos de madame, até mesmo da forma que a senhora está: um mal-ajambrado triunvirato de pernas, barrigas e carapinha num banco da Praça Nossa Senhora da Paz.

Mas aprecio justamente a comprovação imediata de que você é algo muito próximo da argamassa do lugar-comum. Gosto de saber que posso lhe atravessar, incólume, com os olhares mais canhestros, mais fora-de-mão. No afã juvenil da minha idade, me bato constantemente com meus companheiros, uns tipos meio gordos e sebosos que sonham diariamente com imensos projetos sociais e infalivelmente acordam molhados no dia seguinte. Praguejam a fovor da mudança do mundo com um descaramento depravado. Pois bem, minha senhora, em toda essa lama na qual sempre chafurdo minha atenção, sua existência é o único seguro maternal de que tudo permanecerá exatamente como está. Os arautos, transatlântico dos reveses, lhe percorrem como se você fosse besta água lacustre. Não sabe o quanto isso me vai bem. Aliás, delicia-me tanto a idéia que agora até descumpro minha promessa e desando a esboçar um sorriso, a mente ansiando para que sua pele se desgaste no ar, bem devagar.

Seria de suma pertinência se nesse instante você se mexesse e fizesse uma panorâmica de si mesma, esquadrinhando a vida, paixão e morte de todas as traças que tiveram sua vez nesse seu vestidinho azul. E, allegro, ma non troppo, um ricto fechado – sei que não tem mais dentes, não cometo abusos – casando com esses olhos de papel reciclado, ficaria agradecido, talvez extasiado.

Não, você não faz idéia do que esse seu corpo realmente seja. Um olhar de si mesma, montado no vigésimo andar de um edifício comercial, nunca lhe passou pela cabeça. Na sua contumácia imbecil de viver debaixo de uma lente de aumento, você nunca atinou para seu potencial geográfico. Estudo-o há cinco minutos, pela primeira vez, e já posso lhe advertir que há grandes desperdícios. Muitas contrações e expansões despropositadas. Mesmo assim não lhe troco por toda essa Ipanema. Daqui do alto, senhora, você ainda é o ponto mais elegante da cidade.