Sunday, July 01, 2007

A saudade dos amigos

A cada frase, a cada sorriso revestido em erro. São empenhados em esquecer meus melhores cantos, os pedaços prediletos que escolhi dos dias que vivi ao lado deles e, sobretudo, os trechos mais memoráveis daquilo que a minha imaginação, coquete, fabricou naqueles horas. São esmerados em me esquecer, assim como os esqueço, da mesma forma desonesta e implacável: lembrando-se deles, com nitidez cirúrgica, através de (seus) momentos errados.

Monday, January 22, 2007

Adolescência

Um dia desses, quando fizer sessenta anos, ainda meto tudo isso num envelope timbrado e mando para alguém de dezenove anos que nunca conhecerei melhor. Alguém como meu filho, ou o filho deste. Dear, my fondest regards, eita merda.

Monday, January 01, 2007

As arestas

Não sei para onde ela conduz os olhos. De resto, não é mais o tempo de se preocupar com olhares. Enterramos todas as transações possíveis no interruptor de um abajur adjacente. O número de moléculas é imutável, nenhum frescor entra ou sai. Estamos presos aos own devices, fixos e previsíveis, redondos e primitivos como as bochechas luminosas de crianças roliças. Na escuridão nunca mais seremos estupidamente originais.

Conhecemos nossa profissão relativamente bem. Cada um puxa sorrateiramente seu pequeno baú de procedimentos para perto de uma moldura retangular de tamanho definido. Esta moldura constitui nossos limites mais óbvios. Alinhamo-nos polidamente.

De cada baú surde uma colcha com toda sorte de retalhos, urdida com toda sorte de materiais. Com um esmero cínico, arrojamos o lençol sobre o nosso parceiro, com o único fim de obscurecê-lo. Então não há mais nada a se fazer. Todos os nossos materiais estão ali, bocas de tergal ou de tafetá, abraços fibrosos, as unhas que rasgam como papel. Nossa mercadoria reluz em sua máxima intensidade, apostando na vontade praticamente cerebral do consorte em se deixar enganar pela escuridão de tantos tecidos.

A colcha se torna uma rede; esperamos por algo que virá do fundo do rio. Contudo, enquanto algo não vem (e na realidade algo nunca virá), assobiamos, a bordo de uma canoa, uma melodia plangente, uma nênia solitária cujo significado se originou nos sábados chuvosos de infância e desde então se desgastou, lentamente.

Ela não olha para mim, talvez nunca olhará. Acho que ela é cética quanto à serventia dessa profissão e eu disponho de pouco para ser enganado. Existimos solitários. Mas eis que no rio estático abrolha um movimento insuspeito. Desfaço-me das redes e atento. É ela que, da outra extremidade da minha pequena embarcação, começou a sorrir e se deleita em fazer carícias circulares e distraídas na superfície da água, as mangas da minha camiseta, os fios dos meus cabelos. Alegre, lhe desejo um boa-noite melífluo e aliviado, cheio de interjeições.

Vou acordar bem além do meio-dia. Sei que me tornei a única coisa verdadeiramente importante de toda a noite, para mim e para ela - a cantiga objeto de sua solidão.

Sunday, December 03, 2006

Juro que não é meu - I

se-xo: quando, num dia ensolarado, um indíviduo bate na porta de outro indíviduo pedindo o guarda-chuva emprestado, entra e só sai de lá quando começa a chover.

Só eunucos ou idosos pobres além do alcance da medicina moderna conseguem flanar, soltos, pelos dias de sol.

Wednesday, November 15, 2006

O Homem Errado

Claramente fazia essa distinção. As morenas nunca morderão sua orelha, Sr. Gagarin, pra quê então praticar balalaicas na lua? Ademais, a meninota loura alemã que brinca de casinha com você nesse exato momento tem ai-meu-bens graciosos ao dizer “minha mão está presa debaixo da sua perna”, aquelas bochechas vermelhuchas que parecem querer jorrar leite das vaquinhas catitas da Baviera. Assim, na sua cabeça, a vaca fazia Guten Tag! e as linhas verticais de seu quarto espirravam em seus olhos como os ossos de uma carcaça que misteriosamente emerge na superfície de um lago. “Deus, durmo num estábulo há vinte cinco anos e não sei!”. Sabe. Há vinte e cinco anos ele irremediavelmente escorrega nessas linhas dos estábulos, aquele tipo de artifício cômico de espetáculo que deixou de ser gracejo para um freudiano depois da queda da bolsa de Nova Iorque. Por todas as vias mentais, em seu pequeno estábulo, a fräuleinzinha rapidamente ganha acessórios visuais. Sobre a testa, despenca-lhe a silhueta de um chapéu; crepita uma pequena barba mal-feita no queixo; das pontas dos dedos saltam canos de revólveres, engatilhados. “Deus, estou dormindo com um bandido”. Bodas de prata, semana que vem.

Monday, September 18, 2006

As Cartas ou Do homem que foi engolido por uma mulher com dentes de liquidificador

Meu melhor amigo do último quarto de hora acha espirituoso brincar de soldadinho com filósofos franceses -- Imagine só: Deleuze contra Foucault, quem você acha que ganha?
Assentamo-nos - um valete de copas, uma dama de espadas e um rei de ouros - nos vértices de um triângulo imaginário. Somos simpáticos. Trata-se de um senhor valete encantador. Dentro de um simples colóquio de três pessoas consegue surrupiar, através da fixação do olhar acima de nossas cabeças, a intimidade e a aprovação de uma legião inexistente de seguidores. Orador de alcova, saberia fazer, creio eu, as confissões mais doces e íntimas com um megafone. Mas está constipado. Trata-se de um senhor valete que sabe fungar. Ela, dama por sua vez, mastiga cigarros num embevecimento que me comove.
Meu melhor amigo do último quarto de hora gosta de seus escritores beatnik bem passados – O Henry Miller bailava no jardim de infância perto da vida que o Kerouac levava – ricto compenetrado - quero ser como o Kerouac quando eu crescer.
Discorremos sobre signos, a nova geografia dos países da antiga Iugoslávia, ele gosta de culinária, os trágicos rumos do teatro, primos sifilíticos, ela também, acampamentos inundados em Bangladesh, deve ter o paladar muito apurado, as corruptelas do magiar, cortes de barba para ditadores, artrites, acha que tem apenas uma boca sensível, fertilizadores japoneses, o amor segundo as revistas, não duvida.
Meu melhor amigo do último quarto de hora não fala de Balzac depois das seis da tarde – C’est fort, c’est excessivement fort.
Temos pernas parecidas, ela e eu. Ambos cruzamos para a direita e só depois passamos para a esquerda. Direita e esquerda, esquerda e direita: e caímos na questão da tradução para o italiano. Ela afirma ter certeza de que é per favore. Ele discorda veementemente. Sibila que por favor é sempre prego. A legião invisível estremece, buliçosa: em casos mais formais se diz per cortesia, peeer cor-te-sii-aaaa. Ela recolhe, aos poucos, aos bicos: peeer cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Entendo que tenha gostado deste pequeno capricho.
Ela se vira e esconde a boca atrás do espaldar de cadeira. Após um breve olhar de soslaio do senhor para mim, ela tem súbito interesse em me estudar fixamente. Um ‘já disseram que a senhora tem uns olhos de comer capim?’ me percorre a espinha, inconstante. Sinto nos nervos de trás uns floreios estranhos.
Meu melhor amigo do último quarto de hora soletra o-t-á-r-i-o nas minhas costas com a ponta dos bigodes.
Uma mandíbula descomunal se ergue detrás da cadeira, a boca de quarteirões de largura, que cresce, que cresce, me engalfinho à perna de uma mesa, o traço reto do batom nos lábios se difunde em rachaduras homéricas, que aumentam, que aumentam, vales nos cantos da boca dessa mulher, quero xingar todos em russo, mas não sei como, como se deleitam!, ela tem dentes de liquidificador, a goela agora é um mundo todo, não vejo mais nada, ela quer me comer, oh Deus, ela vai me comer, ela me comeu.
Meu melhor amigo do último quarto de hora, do fundo do mundo, sussurra ao pé do meu ouvido que devo procurar um analista.

Sunday, September 10, 2006

Drive Thru

— ...pra fora!
Fêmea que sabe bater a porta na cara como ninguém; tipo que faz um homem pré-erigir mentalmente, séculos antes do evento real, uma infinidade de portas batendo feito aquelas moças bonitas do nado sincronizado.
— ...pra fora!
E lá se vão as menininhas graciosas batendo uma após a outra na cabeça. Bateu mesmo? Ainda não? Então vamos lá, garotas, dá tempo pra mais uma fileira mental de pá-pá-pá.
Páááá.

Estou sozinho. O botão do elevador, sempre cumprimentado individualmente por cada membro de um grupo de espectadores de dez pessoas, agora está em silêncio. Só para ter certeza, aperto mais duas vezes.
No elevador fito-me no espelho com caprichos estranhos. Amo essa palavra do inglês, não sei se tem tradução, sou titubeante na língua mater: purposeless. Estou purposeless, indecentemente purposeless. Não, errante não presta.

Porra de purposeless. Estou quase no primeiro andar e cadê o dicionário. Suicídico, com meu purposeless travado na garganta, chego na garagem e meu Pálio jururu parece a piada mais divertida do mundo.
Por conveniência, moro em Copacabana, a do postal da década de cinqüenta. Lido é para as conversas veladas com meu carteiro. Duas horas da manhã e o Drive Thru está em total atividade. — Perdido, sem arrimo, desnorteado? — Chove fino e a tradução entalada desespera, mais ainda por não ter nenhum vício digno em meu caráter no qual capturar tanto desespero. Nunca tive cigarros nos bolsos da calça ou garrafas alcoólicas dentro dos cilindros invisíveis das mãos. Nem o chiclete, arrasa-quarteirão estomacal. Não conheci o passatempo de ser adulto.

Mas o Drive Thru está a pleno vapor. — Homem sem sentido, incerto? — O Ministério da Saúde adverte: fumar provoca câncer de mama. Composição química: alcatrão, seis miligramas; nicotina, zero ponto seis miligramas, monóxido de carbono, oito miligramas. Se beber não dirija, se dirigir, não beba. As gotas de chuvas se tornam mais incomodativas; quase não percebo um carro esporte que pára na minha frente e oferece uma de suas portas à chuva.

Drive Thru. — Onde deixei meus raciocínios? Ah, incerto! — Homem incerto numa estrada escura. Não, minha existência é menos cafona do que isso. Primamos pelo trabalho impecável, nossos funcionários nunca bebem em serviço. Um cigarro corresponde a cinco minutos e meio perdidos na vida de um indivíduo. Um sujeito desamparado. Tampouco. Suo o suor correto, sais imaculados, sais sóbrios e lúcidos, fruto das fisiologias que temem a Deus. As órbitas dos olhos também pululam, mas é pulular saudável, protegido pelo acaso são, veículo divino. Meu filho, isso é coisa do demônio! — Um cara sem objetivo, vagabundo, mundeiro.
Já fui longe demais; não posso mais dirigir. Cuidadosamente aproximo o carro de uma esquina silenciosa e familiar. Dois olhos vermelhos, mas agradáveis, me recebem através do vidro.

— Lola, sabe o que um cara purposeless pode fazer numa noite como essa?
Aliviado, abro a porta e deixo a madrugada entrar.
[o que sobrou de 2005]